Cena do filme "Lula, o Filho do Brasil", do diretor
Fábio Barreto, que narra a trajetória do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva
CÉSAR BENJAMIN
ESPECIAL PARA A FOLHA
A PRISÃO na Polícia do
Exército da Vila Militar, em setembro de
1971, era especialmente ruim:
eu ficava nu em uma cela tão
pequena que só conseguia me
recostar no chão de ladrilhos
usando a diagonal. A cela era
nua também, sem nada, a menos de um buraco no chão que
os militares chamavam de
"boi"; a única água disponível
era a da descarga do "boi". Permanecia em pé durante as noites, em inúteis tentativas de espantar o frio. Comia com as
mãos. Tinha 17 anos de idade.
Um dia a equipe de plantão
abriu a porta de bom humor.
Conduziram-me por dois corredores e colocaram-me em
uma cela maior onde estavam
três criminosos comuns, Caveirinha, Português e Nelson, incentivados ali mesmo a me usar
como bem entendessem. Os
três, porém, foram gentis e solidários comigo. Ofereceram-me
logo um lençol, com o qual me
cobri, passando a usá-lo nos
dias seguintes como uma toga
troncha de senador romano.
Oriundos de São Paulo, Caveirinha e Português disseram-me
que "estavam pedidos" pelo delegado Sérgio Fleury, que provavelmente
iria matá-los. Nelson, um mulato escuro, passava
o tempo cantando Beatles, fingindo que sabia inglês e pedindo nossa
opinião sobre suas caprichadas interpretações. Repetia uma ideia,
pensando alto:
"O Brasil não dá mais. Aqui só
tem gente esperta. Quando sair
dessa, vou para o Senegal. Vou
ser rei do Senegal".
Voltei para a solitária alguns
dias depois. Ainda não sabia
que começava então um longo
período que me levou ao limite.
Vegetei em silêncio, sem contato humano, vendo só quatro paredes -"sobrevivendo a mim
mesmo como um fósforo frio",
para lembrar Fernando Pessoa- durante três anos e meio,
em diferentes quartéis, sem saber o que acontecia fora das celas. Até que, num fim de tarde,
abriram a porta e colocaram-me em um camburão. Eu estava sendo transferido para fora
da Vila Militar. A caçamba do
carro era dividida ao meio por
uma chapa de ferro, de modo
que duas pessoas podiam ser
conduzidas sem que conseguissem se ver. A vedação, porém,
não era completa. Por uma
fresta de alguns centímetros,
no canto inferior à minha direita, apareceram dedos que, pelo
tato, percebi serem femininos.
Fiquei muito perturbado (preso vive de coisas pequenas). Há
anos eu não via, muito menos
tocava, uma mulher.
Fui desembarcado em um
dos presídios do complexo penitenciário de Bangu, para presos comuns, e
colocado na galeria F, "de alta periculosia", como se dizia por lá.
Havia 30 a 40
homens, sem superlotação, e
três eram travestis, a Monique,
a Neguinha e a Eva. Revivi o pesadelo de sofrer uma curra,
mas, mais uma vez, nada ocorreu. Era Carnaval, e a direção
do presídio, excepcionalmente,
permitira a entrada de uma televisão para que os detentos
pudessem assistir ao desfile.
Estavam todos ocupados, torcendo por suas escolas. Pude
então, nessa noite, ter uma longa conversa com as lideranças
do novo lugar: Sapo Lee, Sabichão, Neguinho Dois, Formigão, Ari dos Macacos (ou Ari
Navalhada, por causa de uma
imensa cicatriz que trazia no
rosto) e Chinês. Quando o dia
amanheceu éramos quase amigos, o que não impediu que, durante algum tempo, eu fosse
submetido à tradicional série
de "provas de fogo", situações
armadas para testar a firmeza
de cada novato.
Quando fui rebatizado, estava aceito. Passei a
ser o Devagar. Aos poucos,
aprendi a "língua de congo", o
dialeto que os presos usam entre si para não serem entendidos pelos estranhos ao grupo.
Com a entrada de um novo
diretor, mais liberal, consegui
reativar as salas de aula do presídio para turmas de primeiro e
de segundo grau. Além de dezenas de presos, de todas as galerias, guardas penitenciários e
até o chefe de segurança se inscreveram para tentar um diploma do supletivo. Era o que eu
faria, também: clandestino desde os 14 anos, preso desde os 17,
já estava com 22 e não tinha o
segundo grau. Tornei-me o
professor de todas as matérias,
mas faria as provas junto com
eles.
Passei assim a maior parte
dos quase dois anos que fiquei
em Bangu. Nos intervalos das
aulas, traduzia livros para mim
mesmo, para aprender línguas,
e escrevia petições para advogados dos presos ou cartas de
amor que eles enviavam para
namoradas reais, supostas ou
apenas desejadas, algumas das
quais presas no Talavera Bruce,
ali ao lado. Quanto mais melosas, melhor.
Como não havia sido levado a julgamento, por
causa da menoridade na época
da prisão, não cumpria nenhuma pena específica. Por isso era
mantido nesse confinamento
semiclandestino, segregado
dos demais presos políticos. Ignorava quanto tempo ainda
permaneceria nessa situação.
Lembro-me com emoção
-toda essa trajetória me emociona, a ponto de eu nunca tê-la
compartilhado- do dia em que
circulou a notícia de que eu seria transferido. Recebi dezenas
de catataus, de todas as galerias, trazidos pelos próprios
guardas. Catatau, em língua de
congo, é uma espécie de bilhete
de apresentação em que o signatário afiança a seus conhecidos que o portador é "sujeito-homem" e deve ser ajudado nos
outros presídios por onde passar.
Alguns presos propuseram-se a organizar uma rebelião, temendo que a transferência fosse parte de um plano
contra a minha vida. A essa altura, já haviam compreendido
há muito quem eu era e o que
era uma ditadura.
Eu os tranquilizei: na Frei Caneca, para
onde iria, estavam os meus antigos companheiros de militância, que reencontraria tantos
anos depois. Descumprindo o
regulamento, os guardas permitiram que eu entrasse em todas as galerias para me despedir afetuosamente de alunos e
amigos. O Devagar ia embora.
São Paulo, 1994. Eu estava na
casa que servia para a produção
dos programas de televisão da
campanha de Lula. Com o Plano Real, Fernando Henrique
passara à frente, dificultando e
confundindo a nossa campanha.
Nesse contexto, deixei trabalho e família no Rio e me instalei na produtora de TV, dormindo em um sofá, para tentar
ajudar. Lá pelas tantas, recebi
um presente de grego: um grupo de apoiadores trouxe dos
Estados Unidos um renomado
marqueteiro, cujo nome esqueci. Lula gravava os programas,
mais ou menos, duas vezes por
semana, de modo que convivi
com o americano durante alguns dias sem que ele houvesse
ainda visto o candidato.
Dizia-me da importância do primeiro
encontro, em que tentaria formatar a psicologia de Lula, saber o que lhe passava na alma,
quem era ele, conhecer suas
opiniões sobre o Brasil e o momento da campanha, para então propor uma estratégia. Para
mim, nada disso fazia sentido,
mas eu não queria tratá-lo mal.
O primeiro encontro foi no
refeitório, durante um almoço.
Na mesa, estávamos eu, o americano ao meu lado, Lula e o publicitário Paulo de Tarso em
frente e, nas cabeceiras, Espinoza (segurança de Lula) e outro publicitário brasileiro que
trabalhava conosco, cujo nome
também esqueci. Lula puxou
conversa: "Você esteve preso,
não é Cesinha?" "Estive."
"Quanto tempo?" "Alguns
anos...", desconversei (raramente falo nesse assunto). Lula
continuou: "Eu não aguentaria.
Não vivo sem boceta".
Para comprovar essa afirmação, passou a narrar com fluência como havia tentado subjugar outro preso nos 30 dias em
que ficara detido. Chamava-o
de "menino do MEP", em referência a uma organização de esquerda que já deixou de existir.
Ficara surpreso com a resistência do "menino", que frustrara
a investida com cotoveladas e
socos.
Foi um dos momentos mais
kafkianos que vivi. Enquanto
ouvia a narrativa do nosso candidato, eu relembrava as vezes
em que poderia ter sido, digamos assim, o "menino do MEP"
nas mãos de criminosos comuns considerados perigosos,
condenados a penas longas,
que, não obstante essas condições, sempre me respeitaram.
O marqueteiro americano me
cutucava, impaciente, para que
eu traduzisse o que Lula falava,
dada a importância do primeiro
encontro. Eu não sabia o que
fazer. Não podia lhe dizer o que
estava ouvindo. Depois do almoço, desconversei: Lula só havia dito generalidades sem importância. O americano achou que eu estava boicotando o seu
trabalho. Ficou bravo e, felizmente, desapareceu.
Dias depois de ter retornado
para a solitária, ainda na PE da
Vila Militar, alguém empurrou
por baixo da porta um exemplar do jornal "O Dia". A matéria da primeira página, com direito a manchete principal,
anunciava que Caveirinha e
Português haviam sido localizados no bairro do Rio Comprido por uma equipe do delegado
Fleury e mortos depois de intensa perseguição e tiroteio.
Consumara-se o assassinato
que eles haviam antevisto.
Nelson, que amava os Beatles, não conseguiu ser o rei do
Senegal: transferido para o presídio de Água Santa, liderou
uma greve de fome contra os
espancamentos de presos e
perseverou nela até morrer de
inanição, cerca de 60 dias depois. Seu pai, guarda penitenciário, servia naquela unidade.
Neguinho Dois também
morreu na prisão. Sapo Lee foi
transferido para a Ilha Grande;
perdi sua pista quando o presídio de lá foi desativado. Chinês
foi solto e conseguiu ser contratado por uma empreiteira que o
enviaria para trabalhar em uma
obra na Arábia, mas a empresa
mudou os planos e o mandou
para o Alasca. Na última vez
que falei com ele, há mais de 20
anos, estava animado com a
perspectiva do embarque:
"Arábia ou Alasca, Devagar, é
tudo as mesmas Alemanhas!"
Ele quis ir embora para escapar
do destino de seu melhor amigo, o Sabichão, que também havia sido solto, novamente preso
e dessa vez assassinado. Não sei
o que aconteceu com o Formigão e o Ari Navalhada.
A todos, autênticos filhos do
Brasil, tão castigados, presto
homenagem, estejam onde estiverem, mortos ou vivos, pela
maneira como trataram um jovem branco de classe média, na
casa dos 20 anos, que lhes esteve ao alcance das mãos.
Eu nunca soube quem é o
"menino do MEP". Suponho
que esteja vivo, pois a organização era formada por gente com
o meu perfil. Nossa sobrevida,
em geral, é bem maior do que a
dos pobres e pretos.
O homem que me disse que o
atacou é hoje presidente da República. É conciliador e, dizem,
faz um bom governo. Ganhou
projeção internacional. Afastei-me dele depois daquela
conversa na produtora de televisão, mas desejo-lhe sorte, pelo bem do nosso país. Espero
que tenha melhorado com o
passar dos anos.
Mesmo assim, não pretendo
assistir a "O Filho do Brasil",
que exala o mau cheiro das mistificações. Li nos jornais que o
filme mostra cenas dos 30 dias
em que Lula esteve detido e
lembrei das passagens que registrei neste texto, que está
além da política. Não pretende
acusar, rotular ou julgar, mas
refletir sobre a complexidade
da condição humana, justamente o que um filme assim, a
serviço do culto à personalidade, tenta esconder.
CÉSAR BENJAMIN, 55, militou no movimento
estudantil secundarista em 1968 e passou para
a clandestinidade depois da decretação do Ato
Institucional nº 5, em 13 de dezembro desse
ano, juntando-se à resistência armada ao regime militar. Foi preso em
meados de 1971, com
17 anos, e expulso do país no final de 1976. Retornou em 1978. Ajudou a
fundar o PT, do qual se
desfiliou em 1995. Em 2006 foi candidato a vice-presidente na chapa
liderada pela senadora Heloísa Helena, do PSOL, do qual também se
desfiliou. Trabalhou na Fundação Getulio Vargas, na
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, na Prefeitura do Rio
de Janeiro e na Editora
Nova Fronteira. É editor da Editora Contraponto
e colunista da
Folha.
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br