terça-feira, 23 de outubro de 2012

O LAMENTO DE UM DINOSSAURO".



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Artigo da Folha de São Paulo,  traz uma reflexão do grande jornalista Mário Chimanovitch que vale também para profissionais de outras áreas, onde ser velho virou sinônimo de estorvo.
  
  “Hoje, tratam o velho como um estorvo. Jornalistas das antigas são desprezados. Para os jovens, tudo está na internet, e lá não há velho chato. Estou sobrando”.

"Como velho jornalista da velha escola, aquela que nos ensinava na unha e nos cascudos de chefias que acatávamos sem chiar, gratos por podermos conviver com nomes cujo simples som nos intimidava, observo que em algum momento algo muito importante se rompeu e ninguém lhe deu a menor importância.

Hoje, por todo lado, apregoa-se que só o novo é bom e todos disputam a honra de serem mais novos do que os demais. Ser velho, nestes tempos estranhos, é ser um estorvo, ser inútil, um dinossauro improvável, movimentando-se num universo de frágeis louças. Eu sou um dinossauro e vivo trombando o grande rabo da minha longa história contra as prateleiras deste mundo asséptico. Acho que estou sobrando. 

Muito se fala, nos discursos eleitoreiros, das bondades que cada campanha sugere a seu candidato, para agradar a nós, os mais velhos. Cada vez que vejo um almofadinha desses abraçando a senhorinha sofrida e prometendo-lhe mundos e fundos, a ira me sobe à cabeça e por pouco não arremesso a bengala que me ampara de encontro ao televisor.

Porque, no fundo, no fundo mesmo, o que todo mundo quer é tirar a nós, os velhos, do caminho e dos cofres da previdência. Somos aquelas criaturas que parecem servir, apenas, para confrontar cada jovem pimpão com sua própria finitude e com o fato de que a única alternativa disponível à morte, por enquanto, é mesmo sobreviver, como der.

E é aqui que a coisa complica. Provavelmente nunca na história se desprezou tanto a experiência e a memória dos mais velhos como nas últimas décadas. Se você, como eu, é um jornalista "das antigas", vale menos que um PC 386, daqueles que um dia pareceram uma enorme inovação e hoje não passam de lixo eletrônico descartável e, como tal, ambientalmente incorreto. 

Eu me sinto ambientalmente incorreto quando tento mostrar o muito que a memória de duas guerras cobertas, alguns prêmios de imprensa e reportagens memoráveis, inutilmente, me ensinou. Desempregado desde 2007, sobrevivendo de cada vez mais raros bicos, sinto que cheguei aos meus limites. A autoestima se esfacela e posso entender porque tantos não resistiram e acabaram sucumbindo ao álcool, às drogas ou, tanto pior, à ideia da própria morte. 

Tolo e romântico que sempre fui, imaginava que essa vivência toda, mais tarde, me permitiria ajudar os mais novos a melhorarem o mundo imperfeito que é o campo de colheita dos bons jornalistas. Ledo engano, porém. Tudo o que a história pode ensinar a um jovem, ao que parece, pode ser encontrado nos meandros da nebulosa da internet. Com a vantagem de que lá não haverá nenhum velho chato para dizer que noutros tempos, no meu tempo, algo era assim ou assado por causa disto ou daquilo.

A informação brotará do tablet, cristalina, fria e desinfetada pelo distanciamento tecnológico. O dedicado repórter, c/o ímpeto de seus jovens anos, vai poder navegar p/escaninhos da memória que me resta, sem precisar me aturar e a minha própria história. Acho que vou ter de procurar emprego de empacotador de caixa de supermercado.

E se um dia algum candidato se aproximar de mim, entre um pé de alface e uma caixa de ovos, agradecerei cada migalha que governos me oferecerem como dádiva. Ao menos assim, talvez, eu tenha alguma utilidade".

MÁRIO CHIMANOVITCH, 67, é jornalista há 44 anos. Repórter investigativo,cobriu conflitos no Oriente Médio, na África e na Amazônia

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