De passagem por Princeton em 2004, Jerome Silvester confessou em uma entrevista que amava, mais do que a todos os homens de ciência e filósofos do mundo, o célebre físico italiano Galileu Galilei, que provou ser o sol o centro do nosso sistema planetário, contra a opinião conservadora e supersticiosa que pretendia ser a Terra o centro do universo.
Galileu, à esquerda, foi uma inspiração para o dramaturgo Bertold Brecht, que também teve restrições de expressão./Reprodução
Foram três frases tiradas de documentos deixados por Galileu as que mais impressionaram Jerome. "Não podemos", dizia uma delas, rabiscada em meio às perseguições que sofreu pela Inquisição, "ensinar tudo às pessoas, mas podemos, sim, ajudá-las a descobrir quase tudo por elas mesmas". Em outra ocasião ele escreveu: "Todas as verdades são fáceis de entender, desde que sejam percebidas em sua essência. A dificuldade está em percebê-las". Ainda em outro momento, o astrônomo fez este registro: "No que diz respeito ao percebimento, a autoridade de mil homens vale menos que a percepção direta de um único homem".
silvester esteve novamente em Princeton, então para montar uma peça de Bertold Brecht, chamada exatamente Galileu, em que é mostrado o personagem central às voltas com o raciocínio obsessivo e sinuoso de seu carrasco-inquisidor.
Segue-se a isso a reclusão a que o "pai da ciência" foi condenado por nove anos, até a sua morte. O uso inicial do telescópio pelo astrônomo desperta forte antipatia nas autoridades eclesiásticas, que viam nisso um arrogante desafio ao Deus que eles afirmavam estar representando.
Brecht falava de si mesmo e do personagem, pondo nos seus lábios o que teria dito aos fanáticos e medíocres que o interrogavam, falando em nome da devoção e do zelo religioso. O autor da peça intuía que a fraqueza daquele Deus defendido pelos inquisidores era o fato dele ser imaginário, pura projeção do medo daqueles que falavam em seu nome.
Brecht via em Galileu a vaga repetição da sua história pessoal, dividido entre a liberdade interior e a prisão ideológica. Depois da Segunda Guerra, ele perambulou pela Europa em busca de um lugar para viver e acabou, quem diria, na Alemanha Oriental. Nos últimos anos de vida criticou acerbamente o governo de Walter Ulbricht, –que não lhe permitia expressar seu descontantamento com a "ditadura do proletariado", mas o tolerava por sua fama internacional.
Era então inevitável que Brecht voltasse a Galileu, essa pedra no caminho dos inquisidores dos últimos cinco séculos. Era previsível que Jerome Silvester voltasse a montar o Galileu de Brecht, que agora vinha com carga dupla e conteúdo metafórico.
Uma peça anterior dele, O Círculo de Giz Caucasiano, mostra um personagem russo fixado na ideia de fazer uma autocrítica – essa coisa que o autor não faria nos "moldes burgueses" mas sim à feição proletária, verberando o líder comunista alemão Ulbricht quando este se propôs dissolver um partido aliado.
"Melhor dissolver logo o povo", gritava Brecht nos folhetos que assinou em Berlim Oriental, "e arranjar habitantes novos para a Alemanha".
Em um poema datado de 1930, Brecht clama contra o silêncio que pesa sobre um povo petrificado pela propaganda política engajada, aquela mesma que cobra a liberdade e entretanto exerce a opressão. "Mas os homens não dirão: os tempos agora são negros. E sim perguntarão porque os poetas se calam", escreveu Brecht.
Na peça Galileu as cenas vão aos poucos mostrando como raciocina o fanatismo, desafiando a piedade e o bom senso. Primeiro, o pai da ciência moderna e seus fascinados amigos contemplam o telescópio, adiante, num salão de Florença, monges no Colégio Romano comparam novas descobertas a novas heresias. Na casa do Cardeal Bellarmin em Roma, ao lado de Virgínia, filha de Galileu, há um constrangimento que prenuncia o processo e o interrogatório.
Finalmente, numa câmara no Vaticano, o Papa Urbano VIII ouve o cardeal inquisidor e o círculo se fecha. A prisão em uma casa de campo durante nove anos, e afinal a morte natural de Galileu, que viveu os seus últimos anos em profunda meditação – se é possível descrever dessa maneira a vida interior de um homem extraordinariamente dotado.
Pelas mãos de Jerome Silvester, Princeton se deslumbrou com a beleza e o horror da história. E creio que sei porque Jerome colheu aquelas frases de Galileu, fixadas com amor na memória para definir o tom dominante de sua montagem da peça monumental de Brecht.
Isso, se for de fato possível ajudar a entender totalmente aquilo que só entendemos em parte. A essência das verdades que passam por nós nem sempre se consegue guardar como joia no cofre da nossa memória porque ela se desfigura quando escondida. Finalmente, a autoridade com que revestimos nossas escolhas vale muito pouco comparada à beleza delicada e quase infinita de um percebimento instantâneo, que ilumina todo um universo.
Galileu nos ensinou a ver o céu, e com isso a filosofar; Brecht nos ajudou a entendê-lo e Silvester nos faz pensar nisso tudo quando passa por Princeton com sua trupe.
Fonte:
dcomercio
Luiz Carlos Lisboa é jornalista, escritor e reside em Princeton (EUA).
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