por HELDER CALDEIRA*
Não é novidade dizer que a impunidade é uma praga devastadora. Consagrada no Brasil como uma espécie tergiversa de instituição, enraizada nos Poderes, entranhada na alma da vida pública. O julgamento do Mensalão surgiu como um ponto fora da curva, um marco. Não por ser o maior escândalo de corrupção da história — não é, nunca foi —, mas por levar à apreciação do Supremo Tribunal Federal os crimes de corrupção cometidos por uma monumental quadrilha nascida no coração do partido político que ocupa a Presidência da República e quer se perpetuar no poder, custe o que custar.
Consolidou-se uma enorme expectativa na sociedade. Não por acaso ou por meras ideologias. Evidenciando a morosidade da justiça brasileira, o julgamento já consumiu mais de um ano, versando sobre crimes praticados há uma década. Por decisão da maioria dos “eminentes preclaros nobres excelentíssimos salve-salve” ministros do STF, foi dado provimento aos famigerados Embargos Infringentes interpostos pelos “réus-figurões”, protelando a conclusão e a execução das sentenças e jogando a decisão final para 2014 — quiçá 2015 —, ainda que sob risco da prescrição de diversos crimes.
Faz-se um silêncio assombroso ao redor da figura de um ministro do Supremo Tribunal Federal, trajando anacrônicas togas valorativas, designados por pronomes que garantem superlativa deferência, serviçais de vernáculo propositalmente embaraçado — algumas vezes de duvidosa eficácia ou até ridícula subsistência — e proclamados derradeiros guardiões da Constituição da República. São onze confortáveis cadeiras de espaldar alto quase míticas. Místicas.
É exatamente essa alegoria de mitos que garante à Suprema Corte servir-se do pernicioso argumento insular. “O STF não pode se contaminar pelo clamor popular, pela vontade das maiorias contingentes”, disse o ministro decano Celso de Mello durante seu voto de desempate quanto ao provimento dos Embargos Infringentes, decisão que garantiu novo fôlego e a prescrição de crimes para os réus do julgamento do Mensalão, “profanadores da República”, como garantiu o próprio magistrado em passado recente.
“Contaminar” foi uma extraordinária escolha lexical. Grosso modo, sugere ser alguma doença o povo brasileiro reunir-se em pleito coletivo pelo fim da impunidade funesta que corrói e desmoraliza as instituições deste país. Manter-se uma ilha undecágona seria, portanto — e na opinião da maioria dos ministros —, o remédio para uma suposta moléstia que atinge as multidões neste início de século, vítimas da explosão horizontal da informação, das redes sociais e de um surto de sonambulismo, impróprio aos hibernos em berço esplêndido. Sob esse pensamento nauseabundo, repousam os pilares da paródia de democracia vigente no Brasil.
Já que tísicos da contemporaneidade, façamo-nos de tolos por alguns instantes. Fossem os Embargos Infringentes um ambiente recursal sólido e de amplo espectro na garantia de direitos humanos fundamentais, o que explicaria uma divisão tão contundente da Corte? Aliás, dissensão que lança luz sobre o aparelhamento político do Supremo Tribunal Federal: à exceção do “voto de Minerva” de Celso de Mello, todos os demais ministros que acataram o“recurso do recurso do recurso”, o “embargo do embargo do embargo”, foram indicados por presidentes petistas ligados diretamente ao núcleo da quadrilha política que articulou e executou o Mensalão.
Cumpre-nos apenas lamentar a eternização do roteiro tragicômico que desenha a história política brasileira. Como já vimos em incontáveis jurisprudências, “peixes graúdos” não morrem na praia. Tampouco vão parar no xilindró. Devolver dinheiro roubado? Nem pensar! Definitivamente, o Brasil não é um país sério. Triste a nação que tem nesta assertiva um clichê. Coroada, a impunidade funesta se mantem.
*HELDER CALDEIRA é escritor e jornalista político.
Fonte: http://www.revistaon.com.br
Charge: Sponholz
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