Quando foi à Venezuela, no final de abril, o escritor peruano Mario Vargas Llosa fez questão de dizer que não pretendia provocar ninguém, nem mesmo o governo mareado do presidente Nicolás Maduro. Tampouco resistiu à oportunidade.
Convidado para o seminário América Latina, a Liberdade é o Futuro, o laureado autor peruano, conhecido pelo texto magistral e por sua crítica ferina ao caudilhismo latino, não decepcionou. "Há uma burocracia política despreparada que está administrando algo que não sabe administrar", disse aos jornalistas. "E o resultado é catastrófico."
Até lá, ninguém estranhou. Vargas Llosa jamais escondeu sua antipatia pelo laboratório bolivariano que Hugo Chávez montou na Venezuela e exportou continente afora. O Palácio de Miraflores deixou passar.
Uma coisa é o petardo de um Prêmio Nobel. Paulada de dois, já é demais. De quebra, o escritor gravou uma entrevista para o canal de TV Globovisión, em que falou de tudo e de todos, e não fugiu da pergunta sobre um polêmico artigo a respeito de Chávez escrito por seu recém falecido amigo, Gabriel García Márquez.
"Tive a sensação de que eu havia viajado e conversado a gosto com dois homens opostos", escreveu Gabo em O Enigma dos Dois Chávez. "Um a quem a sorte pode lhe dar a chance de salvar seu país. Outro, um ilusionista, que entraria para a história como um déspota."
Censura. A entrevista foi ao ar na terça-feira, censurada. Logo após a pergunta, o canal - hoje tocado por amigos do chavismo - cortou para um longo intervalo comercial, recheado dos familiares boletins chapa-branca que hoje enfastiam a TV bolivariana.
Que o governo Maduro silencia os dissidentes, nenhuma surpresa. Já calar os dois maiores ícones da literatura latino-americana é uma temeridade. Ainda mais quando um é García Márquez, amigo vitalício de Fidel Castro e padrinho desavergonhado da surrada flâmula da esquerda latina.
Aí está a esperteza de Vargas Llosa, que sabe jogar um gigante contra outro. Sabe o peso dos mortos nas Américas. Mais ainda, na Venezuela, que chora seu comandante, mas se ajoelha ante seu espectro. Gabo tinha lá sua queda pelos patriarcas, mas não se enganou com o ilusionismo de boina.
A ousadia do autor vai além do mausoléu. Vargas Llosa é um dos poucos intelectuais públicos latino-americanos a dizer o que pensa, onde quer que esteja, sem se melindrar com a diplomacia de compadrios que engessa os valores das nossas latitudes. "Venho criticar as coisas que me parecem equivocadas e acredito que estejam fazendo um dano enorme a um país que eu amo muito", disse o peruano na Venezuela.
Na sua franqueza, ele lembra um pouco Luiz Inácio Lula da Silva. Só que sem o escancarado partidarismo do líder brasileiro, que empresta suas credenciais de ex-mandatário para escorar caudilhos pelo mundo, especialmente os bolivarianos em apuros.
Nesse sentido, Lula compensa uma lacuna histórica. O levante bolivariano, que começou com Chávez, espalhou-se pelos Andes e pelo Caribe, mas agora tropeça em erros toscos. É uma revolução sem cabeça.
Sem ideais. Contabilizou tietes, como os atores Sean Penn e Danny Glover, agora quietinhos, mas nunca um pensador do gabarito de Maxim Gorky, o dramaturgo russo que defendeu Lenin e Stalin. Muito menos a bancada de filósofos que formularam a revolução chinesa.
Fora Heinz Dietrich, o obscuro professor mexicano que moldou o pensamento de Chávez, mas depois se afastou quando o desastre se instalou, não há intelectual que se preze disposto a bancar o ideário bolivariano.
O último, o linguista Noam Chomsky, jogou a toalha quando o comandante encarcerou uma juíza federal que teve o desplante de liberar um inimigo da revolução. A chamada revolução bolivariana sempre se impôs pelo braço, não pelas ideias. Ainda tem amigos falantes, como o companheiro Lula. No outro lado do pódio, tem Vargas Llosa. E mais ninguém.
*Mac Margolis é colunista do 'Estado' e chefe da sucursal brasileira do portal de notícias Vocativ.
Fonte: http://www.estadao.com.br
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