Por Arnaldo Jabor
Um grupo de intelectuais e artistas se reuniu em São Paulo para fazer um manifesto contra a possibilidade de impeachment da Dilma. Estão no direito deles, claro. Ninguém sabe se o impeachment será bom ou ruim para o país. Talvez eles tenham razão. Quem sabe? Mas, por trás da luta contra o impeachment, existe uma negação clara da grande crise política que vivemos. As instituições são acusadas de serem usadas pela “direita”, como disse um deles: o TCU é um bando de políticos fracassados.
Outro escreveu há dias que as marchas populares de junho e as deste ano foram uma manifestação de “gente de direita”. Segundo ele, 1 milhão de “direitistas” querem destruir o sagrado ninho da história que é o PT. Outro autografou um livro de presente para o Maduro. Que interstícios percorrem as ideias dentro de suas mentes, para negar tudo que está acontecendo hoje? Não conseguem fazer uma reles autocrítica de suas crenças. Mudar de ideia é considerado traição. É uma visão paranoica de que o país está tomado por “fascistas” que querem tirar o PT do poder. Eu, por exemplo, não sou fascista (dirão meus inimigos: reacionário neoliberal), mas quero ver o lulopetismo fora do poder. Eles estão desmanchando tudo que era sólido em nome de uma fé paralítica. Negam-se a ver que a corrupção virou um sistema político. Não só roubaram bilhões em conluio com aliados ladrões, como também roubaram nossos mais generosos sentimentos. A crise destrói o país e muda nossas mentes e corações. Cada um leva consigo uma forma de melancolia. É a grande neurose nacional do “que fazer?”.
Os petistas têm uma visão de mundo deturpada por conceitos compartimentados e acusatórios: luta de classes, culpados e inocentes, traidores e traídos. Stálin: “A humanidade está dividida entre ricos e pobres, proprietários e explorados. Subestimar esta divisão significa abstrair-se dos fatos fundamentais”. Ou Lênin: “Qualquer cozinheiro devia ser capaz de governar um país”.
Só veem vítimas e carrascos. Preocupam-se mais com as ossadas do Araguaia do que com o futuro de nossa anomalia atual.
O filósofo João Pereira Coutinho disse outro dia na “Folha de S.Paulo” uma frase ótima: “Oprimido e opressor não esgotam as relações humanas possíveis, mesmo as desiguais. A luta de classes é uma escolha política, não um dado natural” – na mosca.
Não arredaram os pés dos velhos dogmas da era stalinista, como, aliás, os antigos comunas fizeram desde quando se recusaram a votar nos social-democratas alemães, fazendo Hitler subir ao poder. Já em 1924, Stálin chegou a afirmar: “O fascismo e a social-democracia não são inimigos, mas irmãos gêmeos”. A verdade é que os petistas nunca acreditaram na “democracia burguesa”. Eu me lembro de mim mesmo no tempo da UNE, quando usávamos a palavra “democracia” apenas como estratégia para avançar na “linha justa”. “Vamos fingir que acreditamos na democracia para depois extirpá-la”. Assim pensávamos, e eles pensam assim até hoje; como disse uma filósofa: “Hoje não vamos perder a luta, pois antes da ditadura éramos inexperientes, mas hoje não somos mais”. É “um janguismo mesclado com toques de bolivarianismo”.
Até agora governaram um país capitalista com regras e métodos anticapitalistas – dá no desastre econômico a que assistimos. Pedem a volta da nova matriz econômica que quebrou o país. Como é que pode?
Alguns intelectuais ficam “angustiadinhos”: “Ah... Eu tinha um sonho... que se esfumou...” – choram os militantes imaginários, e nada fazem. A covardia intelectual é grande. Há o medo de ser chamado de “reacionário” ou de “careta”. Continuam ativos os três tipos exemplares de “radicais”: os radicais de cervejaria, os radicais de enfermaria e os radicais de estrebaria. Os frívolos, os burros e os loucos. Uns bebem e falam em revolução; outros zurram; e os terceiros alucinam.
Acham que a complexidade é um complô contra eles, acham a circularidade inevitável da vida uma armação do neoliberalismo internacional. Para eles, “administrar” é visto como ato menor, até meio reacionário, pois administrar é manter, preservar – coisa de capitalistas.
Estamos diante de um momento histórico gravíssimo, com os dois tumores gêmeos de nossa doença: a direita do atraso e a esquerda do atraso. Como escreveu Bobbio, se há uma coisa que une esquerda e direita é o ódio à democracia.
Esta crise é tão sintomática, tão exemplar para a mudança do país, que não podia ser desperdiçada pelos pensadores livres. É uma tomografia que mostra as glândulas, as secreções do corpo brasileiro – um diagnóstico completo. Esse espasmo de verdade, essa explosão de nossas vísceras, talvez seja perdida, porque as manobras do atraso de “direita” e do atraso de “esquerda” trabalham unidos para que a mentira vença.
E intelectuais sérios, os artistas famosos e as celebridades não entendem isso, não abrem a boca.
Não veem a reestatização da economia, o inchamento maior ainda da maquina pública, a destruição das agências reguladoras, da Lei de Responsabilidade Fiscal, em busca de um getulismo tardio, uma visão do Estado como centro de tudo. Quem quiser alguma positividade é “traidor”. No Brasil, a palavra “esquerda” continua o ópio dos intelectuais.
E por cima deles, nos colóquios, nos seminários, nas universidades, flutuam os discursos de análise política límpidos, a sociologia infalível, a orgulhosa ostentação da verdade. “Nós sabemos a verdade: está tudo claro em nossas teses de doutorado. O problema é que o Brasil não se curva a nossas teses...”.
Não admitem que um “choque de capitalismo” seria a única bomba a arrebentar a casamata paralítica do Estado inchado, gastador e ineficiente e que isso seria muito mais progressista que velhas ideias finalistas, esse “platonismo” de galinheiro. Quem tem coragem?
O Brasil evolui pelo que perde, e não pelo que ganha. Sempre houve no país uma desmontagem contínua de ilusões históricas. Com a história em marcha à ré, estranhamente, andamos para a frente. Como?
O Brasil se descobre por subtração, não por soma. Chegaremos a uma vida social mais civilizada quando as ilusões chegarem ao ponto zero.
Fonte: http://www.otempo.com.br
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