quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O Iluminismo em perigo





Por  Luli RadfahrerRadfahrer

"Que obra de arte é o homem! Como é nobre na razão, infinito em capacidades! Em forma e movimento, como é admirável e expressivo! Nas ações, como um anjo! Na compreensão, como um deus! A beleza do mundo, modelo para os animais!" - dizia Shakespeare no mesmo Hamlet em que todos só parecem ter olhos para o "ser ou não ser".

Não há, neste planeta ou nos milhares de mundos novos descobertos recentemente, algo parecido com o homo sapiens. Nenhuma espécie tem tamanha consciência a respeito de suas ações e influência sobre o ambiente em que vive, a ponto de discutir, em mesas de boteco, teorias a respeito do futuro distante ou da transformação do clima.

Somos como deuses. Nosso poder e ideias transcendem os limites físicos e biológicos que nos cercam, desafiando a morte, a peste, a guerra e a fome com elegância e velocidade impecáveis. Mas somos uns deuses desleixados. Precisamos fazer melhor o nosso trabalho antes que as forças animais da brutalidade e da ignorância destruam o que foi tão duramente conquistado.

A razão sempre foi um bem escasso. Exclusividade das elites da Antiguidade e Idade Média, ela só foi democratizada com o Iluminismo, no final do século 17. E mesmo assim, somente em partes da Europa e da América do Norte. Para o resto do mundo a brutalidade e a ignorância foram a regra geral até boa parte do século 19. Em algumas regiões elas continuam válidas, travestidas de fé, autoridade, tradição e outras máscaras culturais.

Ao enfatizar a razão e colocar o ser humano no centro, o Iluminismo projetou o método científico, uma das mais brilhantes descobertas da humanidade. Através dele, as trocas intelectuais conseguiram vencer a superstição, o misticismo e a intolerância, projetando boa parte das descobertas essenciais para o mundo contemporâneo.

Hume, Spinoza, Locke, Voltaire, Hobbes e vários outros intelectuais questionaram a política, a educação, o direito e as relações de poder quase tribais em que ainda se vivia. Na França, os Enciclopedistas catalogaram as grandes descobertas humanas. Do outro lado do Atlântico, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson imaginaram uma nação baseada nos valores da razão.

Com a publicação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Iluminismo parecia ter vencido as forças da ignorância imatura, projetando o homem para uma nova época de compreensão e descobertas.

No ápice dessas descobertas, o computador. "Cérebro eletrônico", a máquina digitai foi criada para ser um escravo incansável - a palavra "robô" vem de uma expressão em tcheco que quer dizer "servo" - caberia a elas fazer o trabalho duro, liberando a humanidade para filosofar.

A princípio a ideia funcionou muito bem. Praticamente não há segmento que funcione sem computadores, nem se imagina uma vida social desconectada. Até os mais tecnofóbicos reconhecem o valor das máquinas digitais, estejam elas em uma UTI ou na torre de controle de um aeroporto.

Mas a automação criou uma simplificação perigosa, uma espécie de determinismo que, como se discutia no século 17, afirma que a liberdade de escolha é uma ilusão. Algoritmos e bases de dados criam uma ilusão de onisciência, esteja no volume de verbetes da Wikipédia, na velocidade do Google, na inteligência de mercado das análises estatísticas, na estabilidade do bitcoin ou na vivacidade das redes sociais nos telefones de seus usuários.

Faraós e líderes religiosos em geral sempre souberam que não há ferramenta mais eficaz para a manipulação do que a ilusão de onisciência e onipotência, propriedades normalmente atribuídas a divindades externas, como Deus ou a máquina. Livres de restrições morais e éticas, essas entidades são senhoras do destino, superiores ao formigueiro humano, perfeitas para controlá-lo. A liberdade é incompatível com a onisciência.

O sonho de comunidades auto-organizáveis dos hippies dos anos 60 evoluiu para as utopias tecnológicas do Vale do Silício. Computadores onipresentes dão a ilusão de que podem controlar todas as áreas da experiência humana. Seus usuários deixariam de ser importantes e passariam a se tornar pontos insignificantes em uma grande rede, cuja única função seria mantê-la estável. Basta analisar o discurso econômico de qualquer país para ver como essa ideia é cada vez mais comum.

Teorias bem-intencionadas, como o "Gene Egoísta" de Richard Dawkins, transformam o homo sapiens em uma espécie de algoritmo genético, incapaz de tomar decisões por conta própria. Ideias mais disparatadas, como a "singularidade" de Ray Kurtzweil, contam os anos para que chegue a época em que as máquinas ultrapassem a capacidade computacional dos cérebros, imaginando um futuro em que possamos nos fundir a elas.

Em que ponto da história o ser humano deixou de ser o senhor da máquina para sucumbir ao misticismo doentio e preguiçoso que acompanha decisões cada vez mais apoiadas na máquina?

Pessoas não são veículos para a execução de algoritmos, da mesma forma que não são cavalos de espíritos de religiões primitivas. Não se sabe direito como o cérebro funciona e sabe-se que os genes estão mais para registros do que deu certo do que para ordens inquestionáveis. Formas algorítmicas de administrar, controlar, treinar e remunerar o homem o desumanizam, tirando dele o que tem de mais precioso: sua capacidade de pensar.

Ao longo da história o ser humano já enfrentou os piores regimes, combatendo-os com razão e auto-crítica. Quando paramos de pensar, quando nosso herói se torna um idiota sortudo e endinheirado, empurrado pelo sistema como um Forrest Gump, a situação é muito mais preocupante.

Por mais que se veja ironia no texto de Shakespeare que abre esta coluna, ele também pode ser visto com uma ponta de esperança. Esperança a respeito de que, considerado o patrimônio cultural e científico conquistados ao longo dos séculos, que não sejam afogados no pântano sombrio da ignorância digital.

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